Pulsão escópica e linguagem cinematográfica: uma análise a partir de Janela Indiscreta

“Minha nossa… Nos tornamos uma raça de voyeurs.” A frase, dita por Stella, personagem do filme Janela Indiscreta (1954), interpretada pela a atriz Thelma Ritter, enuncia a escopofilia como tema central da trama construída por Alfred Hitchcock.

Escopofilia, termo derivado do grego skopeō, é como Sigmund Freud nomeia uma pulsão particular que, em linhas gerais, consiste na necessidade de olhar. Embora não seja uma das pulsões primárias (como a oral e a anal), a escópica é particularmente cara aos seres humanos e fundamental para a experiência cinematográfica, uma vez que a câmera “nos leva ao inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional” (BENJAMIN, 1993, p.94).

Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1915) afirma que a pulsão escópica tem por meta o ato de olhar e, ao mesmo tempo, de se mostrar; assim, todo voyeur seria um exibicionista e vice-versa. Contudo, como mostra Lucia Santaella (2013, p. 99), não há dois termos na estrutura da pulsão, mas três, o que Freud expressou fazendo uso das funções gramaticais: ativa, passiva e reflexiva. Sendo assim, a pulsão escópica incorre com base em etapas, formadas: 1) pelo ato de olhar como atividade voltada para um objeto estranho; 2) pela renúncia ao objeto e reorientação da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo; 3) pela introdução de um novo sujeito, ao qual nos mostramos para sermos contemplados por ele. Embora essas etapas muitas vezes não ocorram nessa ordem e tampouco separadamente, para analisar o filme Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954), abordarei os três movimentos da pulsão – olhar, olhar-se, ser olhado –, como uma metáfora dos três tempos explorados no arco narrativo do filme.

O filme começa com cortinas se abrindo, seguindo-se um movimento de câmera do interior para o exterior de um apartamento, que desvela para nós, espectadores, uma paisagem urbana, cotidiana. Em um giro, a câmera volta para o ponto de onde partiu e apresenta o protagonista, Jeff (apelido de Jeffries, personagem interpretado pelo ator James Stewart). Com esse plano-sequência, o que Hitchcock faz, antes de tudo, é nos colocar em uma posição de voyeurs. A câmera segue mostrando Jeff – suado e imobilizado por conta de um enorme gesso envolvendo por completo a sua perna esquerda – e uma máquina fotográfica também quebrada, indicando a ligação entre o objeto e o corpo do protagonista. Em seguida, ainda vagando pela sala de Jeff, a câmera se detém por um breve instante em uma foto que sofreu o processo de solarização. Ao fixar o enquadramento na fotografia solarizada, processo fotográfico que consiste na inversão dos valores tonais de algumas áreas da imagem fotográfica, Hitchcock apresenta o primeiro significante escópico da trama ao inverter a posição do protagonista de flâneur a voyeur.

A primeira parte do filme coincide com o primeiro tempo pulsional, ou seja, a forma ativa da pulsão: olhar. Junto com Jeff, nos sentamos em sua sala eorbitamos de janela em janela, espiando seus vizinhos. Somos conduzidos pelo olhar de Jeff, a partir de uma câmera presa ao ponto de vista do protagonista. Os olhos do diretor se confundem com os nossos, em prolongados planos subjetivos, que evocam “o lugar escopofílico do espectador” (FANTINI, 2013, p. 139).

Assim como no quadro cinematográfico, as janelas do filme codificam a ideia de recorte da realidade, como uma moldura para uma realidade que vai além da cena. Sabendo desse jogo de planos e enquadres – afinal, Jeff é um fotógrafo –, o protagonista – assim como nós, espectadores – se comporta como uma espécie de investigador das imagens, procurando decifrar um enigma por meio de índices que o percurso interpretativo dá a ver. Seu objetivo é demonstrar uma verdade escondida que, afinal, seria revelada: um dos seus vizinhos cometera um crime.

Para isso, Jeff precisa se aproximar, dar um close, adentrar a cena do crime. Mas, como fazer isso estando imobilizado? É aos quarenta minutos de filme que somos apresentados a outro significante escópico: um binóculo, aparato que, por função, diminui a distância focal entre o observador e o objeto observado. Com o binóculo, o olhar de Jeff alcança o objeto à distância, “tocando-o” sem que ele perceba que está sendo olhado. É esse mesmo significante que vai nos fazer adentrar na forma reflexiva da pulsão escópica: olhar-se. Essa passagem, entretanto, não acontece de forma direta, mas por meio de um outro que entra em cena, ou melhor, uma outra, a personagem de Grace Kelly, Lisa Carol Freemont.

Lisa, namorada de Jeff, deseja ser vista por seu amado, deseja ser o objeto de desejo do Outro. Jeff, por sua vez, parece estar mais interessado no que acontece fora de sua casa. É somente quando Lisa adere à teoria de Jeff sobre o assassinato e se desloca para o domínio dos objetos que ela passa a “ser vista”, tornando-se atraente aos olhos de Jeff. Lisa não se torna objeto do desejo de Jeff puramente por estar do outro lado do plano, mas porque se torna o próprio Jeff, desempenhando o papel de extensão do corpo dele que, imobilizado, não pode entrar na cena do crime. “Como todos os tempos da pulsão estão sempre presentes, a pulsão escópica permanece sempre presa ao narcisismo” (QUINET, 2002, p. 76). Assim, o reconhecimento de Lisa como objeto de desejo de Jeff só ocorre quando este se vê, nela.

O circuito da pulsão escópica se fecha quando o sujeito do olhar passa a ser olhado. Entramos na forma passiva da pulsão quando Lars Thorwald – o vizinho assassino – percebe que está sendo olhado e olha diretamente para Jeff através de seu binóculo e para nós, espectadores, através da câmera. Somos expostos juntos com a câmera subjetiva, que atua como signo do nosso olhar. Quebramos, junto com Hitchcock, a quarta parede e nos deslocamos do lugar passivo de testemunha, para um lugar privilegiado de partícipe da narrativa.

Thorwald deixa o domínio dos objetos olhados e entra no campo do voyeur, mudança de posição que se torna fatal. Segundo Antonio Quinet (2002, p. 49), “o gozo escópico, a Schaulust que essa pulsão provê, é o gozo dos espetáculos e também o gozo do horror, pois o olhar não pode se ver, a não ser ao preço da cegueira ou do desaparecimento do sujeito, o que indica que toda pulsão é também pulsão de morte.” No confronto final, marcado pela mudança de posição entre o voyeur e o exibicionista, é a vez de Thorwald entrar no apartamento de Jeff. Este, para se defender, usa como arma o flash de seu equipamento fotográfico. É pela luz do flash que Jeff consegue barrar o olhar do assassino e escapar da morte. Nas palavras de Janniny Kierniew e Amadeu Weinmann:

“Não é por acaso que Hitchcock faz uso desse recurso. O significante shot, que no cinema também é utilizado no sentido de plano, é carregado de polissemia. Dependendo do contexto, ele pode ser compreendido como uma tentativa, uma tomada de decisão, uma bala de arma de fogo, uma distância de tiro, ou até mesmo uma sequência de fotos. Aliás, ele é traduzido, sobretudo, como tiro ou fotografia. Dessa maneira, temos um Jeffries que não faz uma simples foto, ele faz uma foto-tiro, disparo que barra o olhar mortífero do Outro. A bala-foto, entendida como metáfora da palavra, também é tentativa de sobrevivência. A linguagem cinematográfica permite ao espectador resistir ao puro gozo da imagem, por meio do significante” (KIERNIEWS; WEINMANN, 2016, p. 237).

Ainda de acordo com os autores, “Hitchcock faz do filme uma grande metáfora da tela, evidenciando a capacidade do cinema de mobilizar a pulsão escópica” (Opus cit., 2016, p. 237). De acordo com Quinet (2002, p. 80), “o conceito de pulsão escópica permitiu à psicanálise restabelecer uma função de atividade do olho não mais como fonte de visão, mas como fonte de libido. (…) Lá, onde estava a visão, Freud descobre a pulsão”. É por meio da equivalência da câmera ao olhar que narra o filme que o diretor “joga com as possíveis leituras do expectador, olhar esse historicamente ensinado” (FANTINI, 2013, p. 136), inscrevendo o espectador enquanto sujeito nas tramas da linguagem cinematográfica.

Com Janela Indiscreta se compreende que, assim como as pulsões, a diegese é regida por suas próprias normas de funcionamento interno, sua estrutura. Esse caráter representativo da arte permite a marcação da quebra da realidade com o recurso da quarta parede, processo que no filme é composto por nós, espectadores. Assim, nos deparamos com uma outra questão: se o que experimentamos como realidade é estruturado pela fantasia, com a quebra da quarta parede experimentamos uma tentativa brutal de “retorno ao real” da pulsão. Ao imiscuir realidade e ficção, o recurso nos invoca a participar ativamente da cena com nossas angústias, mas sobretudo com nosso desejo de transformar a realidade do filme.

Entretanto, por mais que a experiência cinematográfica seja representativa da realidade, ela não é a realidade em si. Na vida fora da cena – ou melhor, na outra cena –, o corte seguido pela mudança de perspectiva nunca se realiza por completo, pois não conseguimos nos des-subjetivar por completo. O gozo que se impõe na “vida real” vem carregado de repetição e remete ao vazio estruturante dos nossos desejos. O objeto de desejo nunca é apreensível por inteiro, senão como miragem, um borrão, e, assim, não há desfecho para a pulsão. Sua realização é sempre parcial, em uma trama contínua em que somos sempre voyeurs e exibicionistas ao mesmo tempo.

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Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In:Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993.

FANTINI, João Angelo. A invenção do espectador e as novas subjetividades: da Renascença ao cinema 3D, dos games ao ciberespaço. In:SANTAELLA, Lucia; HISGAIL, F. (Orgs). Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura. São Paulo: Iluminuras, 2013, p. 131-148.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v.7. Rio de Janeiro: Imago, 1980 [1905].

KIERNIEW, Janniny G; WEINMANN, Amadeu de O. O voyeurismo no cinema: uma análise de janela indiscreta. In: Jornal de Psicanálise. São Paulo, dez. 2016, p. 227-239. Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352016000200020&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 30 de maio de 2020.

SANTAELLA, Lucia. O real, o simbólico e o imaginário da pulsão. In: SANTAELLA, Lucia; HISGAIL, F. (Orgs.). Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura. São Paulo: Iluminuras, 2013.

QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

Referência filmográfica

Janela Indiscreta (Rear Window). Direção: Alfred Hitchcock. Produção de Alfred Hitchcock. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1954.

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